sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Ser como "os outros"...

O homem fera


Antonio Izidro era homem simples, operário de bons antecedentes, como há milhões de outros por este Brasil a fora. Trabalhava para a Light, em cujas turmas granjeara a reputação de um sujeito calado e quieto, pontual e cumpridor de seus deveres.Um dia cismou com os seus botões que estava farto da companhia e do convívio de seus semelhantes. Lá teria as suas razões íntimas para essa misantropia. Fossem quais fossem, estava no seu direito. Não devia nada a ninguém. E é preciso reconhecer que muita gente boa compartilha de seu modo de pensar e de seus sentimentos em relação a humanidade. Apenas, porque era um simples e tinha coragem, decidiu-se a viver de acordo com as suas idéias, o que os outros não fazem por serem criaturas complicadas.
Antônio Izidro embrenhou-se nas matas do Itatiaia para viver só, longe do mundo, da sua civilização e, sobretudo, longe dos outros. Há mil e muitos anos, houve indivíduos que assim pensaram e assim fizeram. E os anacoretas dos primeiros séculos conquistaram lugar no paraíso e no rol dos santos da Igreja. Antônio Izidro não queria ser santo nem aspirava a um lugar no paraíso. Apenas pretendia conquistar a paz. Talvez, por um mistério de intuição, lhe houvesse raiado no cérebro a noção que muito filósofo tem defendido, de que os primitivos são mais felizes do que os civilizados. E quando se vê a que conduz a civilização delirante nos seus paroxismos atuais, quem ousará afirmar que não tinha razão?
Assim, como um primitivo, viveu durante três anos, afundado nas br3enhas que conduzem às Agulhas Negras. Vivia feliz, da caça e da pesca, de frutas silvestres, do alimento que as suas mãos colhiam. Morava numa toca formada por dois penhascos. Quando, rotas, se acabaram as roupas que levara para o mato, vestiu-se de peles de cabra. Como São João Batista. E quando, de longe em longe, experimentava a curiosidade de v3er como ia o mundo dos homens, descia ao povoado mais próximo, Campo Belo. Aí vaiavam-no, corriam-no a pedrada, persiguiam-no. E êle voltava para as suas furnas, tendo verificado que os homens continuavam a ser os homens.
Ninguém nunca saberá o que meditou, o que refletiu, o que descobriu dentro de si mesmo, na solidão, essa criatura que sonhou regressar à existência primitiva. Talvez estivesse a ponto de reconquistar a inocência das primeiras idades da espécie. Quem sabe?
Mas, ao desviar-se do caminho dos outros, o egresso do convívio humano não contara com os outros. Podiam estes lá admitir que um homem quisesse viver em paz? Podiam consentir que um sujeito tivesse a originalidade de querer ser livre? – Isso havia de ser indivíduo perigoso.
E em Rezende, na velha cidade fluminense de antigas tradições, onde esta localizada a maior Escola Militar da América do Sul, onde existe um movimentado campo de aviação, onde passam dezenas de trens diários entre São Paulo e Rio, onde há telefones e um clube de futebol, onde chegam diariamente jornais das duas capitais do Brasil, onde a civilização floresce, foi organizada uma batida para ir prender o “selvagem”. Com numerosa matilha, quinze homens armados e aventurosos penetraram nas matas do Itatiaia onde existe um Parque Nacional para o regalo dos turistas. E começou a mais excitante das caçadas, a caça ao homem. O “bicho” foi perseguido de tronco em tronco, de furna em furna, por barrocas e espigões, entre o latido dos cães e o grito dos caçadores.
Acuado como uma fera, Antônio Izidro defendeu-se como um homem. À entrada da sua toca, empunhando a única arma que possuía, uma velha foice de trabalho, enfrentou a matilha e os civilizados. Vibrou e aparou golpes; feriu e foi ferido. Mas que pode um homem só contra quinze, que se fazem acompanhar de cães destemidos, treinados na caça as suçuaranas e maracajás da serra?
Antonio Izidro tombou. Foi amarrado a cordas, pendurado a um pau, como uma onça vencida, e triunfalmente trazido para a cidade, entre brados de vitória. E, assim, entrouxado, foi atirado na cadeia pública pelo crime de ser diferente dos outros. E lá foi exposto à curiosidade e ao escárnio da multidão.
Isto não é invenção ou fantasia. Saiu nos jornais. Aconteceu. Ali, em Rezende, a quatro horas do Rio.
texto de Vivaldo Coroacy